Os autorretratos faziam parte da produção de diversos artistas na Academia. Neste artigo vamos entender um pouco melhor a forma como faziam parte das produções da época.
Para entendermos um pouco sobre o cenário nacional das artes do século XIX no Brasil, principalmente dentro da Academia, Letícia Squeff (2004) conta que um professor da AIBA tinha renda equiparada a de um artesão ou trabalhador urbano.
O docente titular da Academia recebia anualmente 800 mil-reis, inferior ao salário de um professor do Colégio Pedro II que podia ganhar 1 conto por ano. A execução de retratos por professores e formados da academia era uma das formas encontradas para complementar sua renda sem ter que desempenhar outra função que não aquela que se dedicou a estudar e se aperfeiçoar. Mesmo tendo a graça de conseguir viver da arte através de encomendas de retratos, os artistas brasileiros disputavam o mercado também com artistas estrangeiros (Squeff p. 192).
Nas próximas linhas abordaremos alguns exemplos de pinturas de autorretratos, realizados entre o século XIX e início do século XX, por alunos e professores da Academia Imperial de Belas Artes e Escola Nacional de Belas Artes. Cada subtítulo poderia conter vários outros exemplos, contudo devido as limitações quanto ao número de imagens e espaço, mostrarei apenas um exemplo de cada.
Poderíamos dizer que um bom artista não se forma, mas nasce. Vamos tomar como exemplo esse talento prematuro, Manuel de Araújo Porto Alegre (1806 – 1879), futuro Barão de Santo Ângelo, e um dos mais importantes nomes da Academia Imperial de Belas Artes. Porto Alegre não é o único jovem talento a entrar na Academia. Na verdade, ele seria considerado velho se comparado a outros como Pedro Américo que aos 13 anos começa sua carreira acadêmica, mas antes mesmo dos 10 anos de idade participou de uma expedição como desenhista auxiliar do naturalista francês Jean Brunet ao nordeste brasileiro. Temos também Henrique Bernardelli que começou a frequentar a AIBA aos 12 anos, Victor Meirelles aos 15, Rodolfo Amoedo aos 16, Sebastião Fernandes aos 13e muitos outros.
Parece estranho hoje que um adolescente já pudesse frequentar um curso de arquitetura, pintura ou escultura. Contudo, conforme a legislação do período, a escola elementar não era pré-requisito para a entrada em cursos superiores. Na época, bastava ser aprovado em um exame de admissão (Squeff p. 175).
Manuel de Araújo Porto Alegre.
Autorretrato aos 17 anos. C 1827 |
Porto Alegre jovem sfazia seus autorretratos de maneira idealizada, sem manifestações de sentimentos, distorções ou expressividade facial. Todos os elementos estão muito bem resolvidos sem evidenciar qualquer escala de valores ou foco de interesse. Nariz, boca, olhos e vestimenta foram pintados de maneira a serem bem definidos sem grandes contrastes, tudo construído com uma paleta reduzida sobre fundo neutro.
Criei a mim mesmo – Autorretratos de Dürer e Almeida Junior
Além de um meio de exercitar a mão, os autorretratos são um registro de existência no mundo, uma afirmação de identidade e também um exercício de autoconhecimento. Este, na prática pictórica, é o resultado de horas de observação da própria imagem.
No ano de 1500, Albrecht Dürer pintou um dos seus autorretratos com a seguinte inscrição em latim: “ALBERTUS DURERUS NORICUS IPSUM ME PROPRIJS SIC EFFIN GEBAM COLORIBUS AETATIS ANO XXVIII” cuja tradução é: “Eu Albrecht Dürer de Nuremberg, com cores apropriadas criei a mim mesmo à minha imagem, aos 28 anos de idade”. Nota-se aqui a afirmação do ato criador além da busca pela perpetuação da memória, atributos e privilégios dignos apenas de divindades e reis.
José Ferraz de Almeida Junior (1850 – 1899) teve uma vida curta, mas compensou muito bem seu pouco tempo de produção com muita qualidade.
Quando Almeida Junior “criou a si mesmo” neste retrato, assim como Durer aos 28 anos, já estava estudando na École National Supérieure des Beaux-Arts. O artista mantém uma forte tendência acadêmica, retrata-se austero e em total equilíbrio. As carnações, os meios tons, as sombras e luzes constroem uma cabeça rica em variações tonais que se ergue logo atrás de uma grande massa semicircular branca com pinceladas mais marcantes no canto inferior direito. Este elemento branco se coloca numa compensação visual ao rosto que ligeiramente se projeta para a esquerda e de onde vem a iluminação.
A verdadeira postura nos autorretratos
Em seus escritos sobre arte, Ingres (1780 – 1867) distribui inúmeros conselhos a artistas quanto ao modo de representar as figuras. Escreve Ingres:
“O homem geralmente posiciona a cabeça para trás do corpo e o peito adiante; é uma postura nobre, a verdadeira postura”. (Lichtenstein P. 113).
Sebastião Vieira Fernandes (1866 – 1943) foi professor da AIBA e ENBA e o último restaurador oficial da instituição. Suas habilidades eram tamanhas que realizou réplicas fiéis de pinturas históricas consagradas como: A Primeira Missa e Batalha dos Guararapes de Victor Meirelles e Batalha do Avaí de Pedro Américo.
Em seu autorretrato Fernandes mantem o cânone acadêmico: centrado, estável, com leve movimento de cabeça e uma luz indireta que entra pelo lado direito da pintura. Com um olhar atento para algumas de suas pinturas percebemos sua leveza e como constrói a imagem em poucas camadas. Foi um artista hábil no pincel que desenhava pintando com total controle.
Close up
Henrique Bernardelli (1858 – 1936) começou muito cedo na Academia, aos 12. Lecionou na ENBA de 1891 a 1905. Em 1905 se afasta da instituição e, junto a seu irmão, vai lecionar em um atelier particular.
Henrique Bernardelli – Autorretrato. 1916 |
Feições e emoções
Eliseu Visconti. Autorretratos. 1938 |
Um canto do ateliê
Abigail de Andrade (1864 – 1890) não estudou na AIBA, pois a permissão para mulheres estudarem na Academia só foi dada a partir de 1892. Mesmo assim, participou da 26º exposição das Belas Artes da AIBA, tornando-se a primeira mulher a ganhar a medalha de ouro do 1º grau.
Abigail de Andrade. Um canto no meu Ateliê.1884 |
Nesta pintura, a artista mostra seu grande talento retratando-se em seu atelier enquanto pinta o arranjo de flores sobre a mesa e conversa com sua amiga. O cenário se compõe de estatuetas clássicas, retratos na parede, móveis, e uma janela aberta que deixa entrar uma luz forte criando altos contrastes nos objetos.
Entre amigos
Os retratos duplos com cenas comuns como na pintura de Van Eyck do casal Giovanni Alnorfini e sua esposa (1434) e do pintor Quentin Matsys, o banqueiro e sua esposa (1514), além de outros, abrem caminho para os retratos em grupo. Nestes se reuniam artífices, comerciantes, médicos e militares em uma única tela (Motta p.122). Poderíamos citar inúmeros outros artistas que desenvolveram esse gênero como uma de suas atividades principais.
Arthur Timóteo da Costa (1882 – 1922) é mais um dos jovens precoces a entrarem na então Escola Nacional de Belas Artes – ENBA. Foi ganhador do prêmio de viagem ao exterior e participou de diversas edições da Exposição Geral das Belas Artes.
Timóteo da Costa.Alguns Colegas. 1921. MNBA |
Dentro da Pintura
Pedro Américo. Batalha do Avahy.1872. MNBA / Detalhe onde se encontra o autorretrato de Pedro Américo na Pintura. |
Pintado em Florença, e trazido ao Brasil somente em 1877, a Batalha do Avahy é uma das maiores pinturas de cavalete do mundo medindo 6 metros por 11 metros. Pedro Américo se coloca como soldado bem ao centro da composição com olhos arregalados voltado para o observador. Esta não é a única pintura em que o artista se autorretrata. Na Batalha de Campo Grande, de 1871 já havia se colocado também como soldado, mas de forma mais tímida na lateral direita da pintura.
Pedro Américo havia recebido a encomenda do império para fazer pinturas públicas, autorretratar-se nelas parece ser uma estratégia de autopromoção mais eficiente que realizar autorretratos isolados, os quais na maioria dos casos, ficam guardados no atelier ou na casa de parentes.
Autorretratos – Finalizando
Antes da invenção da fotografia e até mesmo depois de sua popularização, os retratos em pintura eram privilégio quase exclusivos das elites herdeiras da nobreza. Era necessário possuir algum recurso financeiro para ter suas feições em uma bela pintura, contudo sempre houve indivíduos que poderiam ter tantos retratos quanto quisessem ou se dispusessem: são eles, os próprios artistas – pintores.
Autorretratar-se é um meio de estudo para desenvolver a técnica, é autopromoção, é autoafirmação, mas também é, querendo ou não, um exercício eficiente de autoconhecimento.
Referências
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SQUEFF, Leticia. O Brasil nas mãos de um pintor: Manuel de Araújo Porto Alegre (1806-1879). Campinas SP. Editora da Unicamp. 2004
WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da história da arte. São Paulo. Martins Fontes. 2006.