Retratos e Autorretratos – Uma introdução ao tema

Estudo de figura humana de minha autoria.

Assim como natureza morta, paisagem ou pintura de gênero, o retrato, segundo Motta (1979) é um gênero da pintura em que quase todos os pintores e escultores se dedicaram em algum momento de sua trajetória. 

Ao longo dos séculos os retratos foram realizados nas mais variadas técnicas de representação. Alguns resistiram a ação do tempo e a força da natureza para chegar aos nossos dias. É por isso que hoje ainda podemos ver belos retratos do Egito antigo e sobreviventes das ruinas de Pompéia.

A história do retrato

Foi apenas durante o período da idade média que o retrato deixou de ser praticado, salvo algumas exceções. Contudo, ele retornou no período da renascença, quando o ser humano é novamente entronado como centro do universo. Neste período, pelas mãos de grandes artistas como os venezianos Gentile Belline, Girgione, Tiziano bem como Lorenzo Lotto o retrato retoma seu espaço.

Então, é frente ao progresso das expansões marítimas que surge uma nova classe de comerciantes. Eles estavam muito interessados em perpetuar sua imagem, concorrendo, dessa forma, com nobres e reis. No mesmo período, no Flandres, a burguesia em ascensão solicitava retratos.  Um dos grandes nomes do período, por exemplo, é Jan Van Eyck (1385 – 1441) que realiza retratos com alto grau de complexidade e profundidade dando um aspecto tridimensional à pintura.

Retrato de Arnolfini. Jan Van Eyck. Detalhe.

Um retrato, antes de mais nada, pede controle técnico. É por isso que aqueles que se atrevem a realizá-los devem adestrar-se com inúmeros exercícios. Eles são uma forma de adquirir habilidade e dominar seus materiais.

Trago, portanto, aqui, duas questões:

• Para pintar bem um retrato é necessário que o artista tenha estudado e realizado inúmeros outros retratos?

• Mas se não há condições para ter sempre um modelo para retratar e exercitar sua prática, como o artista se desenvolve como retratista?

O autorretrato como forma de desenvolver a técnica

Um dos meios mais práticos de se desenvolver na técnica é, sem dúvida, realizando autorretratos. Muitos poderiam dizer que esta prática só possibilitaria ao pintor ser muito hábil em retratar a si mesmo, pois cada pessoa é única e suas formas e tons de pele divergem muito. No entanto, por mais que cada um seja diferente e nenhum retrato seja igual a outro, muito se aprende a cada pintura realizada. A prática, dessa forma, desenvolve a percepção daquilo que é comum a todos, como, por exemplo:

• os vários tons de carnações presentes em um único indivíduo;

• os reflexos, luzes e sombras;

• as expressões faciais.

Além disso, temos o aprimoramento do desenho, fundamental para que a imagem seja reconhecível.

Para todo pintor, praticar é fundamental, principalmente para aquele que se aventura nos retratos, afinal “muitas vezes a mão treinada sabe muito mais que a cabeça” (Klee, 1990 p.229). Também na AIBA (Academia Imperial de Belas Artes) e mais enfaticamente com a Reforma Pedreira de 1854, a exigência do ensino fundamentalmente prático sobrepujando a teoria formava o método oficial de ensino. Matérias teóricas seriam ensinadas somente após um tempo de curso prático (Squeff p.184).

Autorretrato. Van Gogh. Detalhe.

O que há por trás do retrato

Sempre que olhamos para uma pintura estabelecemos algum tipo de comunicação com a obra. Há diálogo que se abre entre o que está dado e é sensível a qualquer pessoa: as linhas, volumes, cores, formas, contrastes, etc. Além disso, há aquilo que ela aponta ou comunica subjetivamente, podendo ou não nos tocar ou sugerir reflexões, sempre com base em nossas experiências.

Em se tratando da obra, “ela é matéria e espirito, ela é forma e conteúdo” (Focillon, p. 11). Como já dito a forma é aquilo que está dado: a estrutura que suporta a obra, as relações harmônicas ou desarmônicas que tecem fios para formar um elemento carregado de tensões visuais. Estas relações formais estão presentes em todas as obras, não somente aquelas conhecidas como clássicas ou acadêmicas. Isso porque, para qualquer decisão em dispor um elemento dentro do espaço, já temos o princípio de composição afirmado.

Nos retratos isso não é diferente. Embora muitas vezes a quantidade de elementos visuais, ritmos e cores não sejam tão intensos quanto em uma pintura histórica, paisagem, pintura de gênero ou até de uma natureza morta, cada elemento disposto tem peso visual e deve se relacionar com o todo para não competir com a proposta da pintura.

Nesse sentido, nos retratos, cada elemento visual deve ser pensado de maneira que a imagem total seja semelhante ao motivo. Da mesma forma, este retrato precisa estabelecer conexões visuais com o modelo. Afinal de contas, de nada serve um retrato que não se parece com o retratado, não é mesmo?

É claro que as experiências do retrato são diferentes umas das outras.  Se, por exemplo, o indivíduo retratado é de meu conhecimento, terei uma experiência diante da imagem. Contudo, se ele for um completo desconhecido, a experiência será diferente.

Um retrato realista seria melhor que outras formas de retrato?

É comum, também, a tendência que temos em julgar um retrato conforme o grau de fidelidade ao modelo. Muitas vezes ouvimos comentários do tipo: parece uma fotografia!, insinuando que quanto mais fotográfico o desenho ou a pintura, mais valioso o trabalho, neste caso o retrato.

Para uma análise coerente com a linguagem pictórica devemos sempre levar em consideração os dois pilares mencionados anteriormente: forma e conteúdo. Se todo valor da obra está fixado em sua capacidade mimética, ou seja, em ser semelhante ao real, ela está fadada a ser somente a tentativa frustrada em se tornar naquilo que não é de sua natureza. No entanto, por mais fiel que seja uma pintura do ser retratado, ela não é o ser em si, mas outra coisa. O retratado é tridimensional, vivo, composto de sentimentos, envelhece, morre, muda de humor a cada dia. O retrato é estático, é o fragmento de um momento da vida do ser e de um ângulo de visão, é bidimensional, sem qualquer mudança no tempo, a não ser por seu desgaste natural.

No retrato não importa somente o que está sendo representado, mas também o fato de que o ato criador não deve ficar submisso ao tema, ou conteúdo, como nunca foi. Nesse sentido:

“O tema não sacrificou a criação artística de grandes obras criadas em todos os tempos. Ele, somente, serviu ao poder criador dos artistas”. Motta (p.112)

Mesmo tendo temas a serem retratados e reconhecidos, Da Vinci apresenta a famosa Monalisa em meio a uma complexa estrutura dinâmica. Van Gogh não inibe suas pesquisas cromáticas para que seu autorretrato seja mais facilmente compreendido. Da mesma forma, Rembrandt e seus belos autorretratos repletos de empastes, sombras que diluem as formas e luzes que induzem o olhar do observador.

Monalisa, Leonardo Da Vinci.

Ao levantar questões quanto a análise de obras de arte levando em consideração aspectos da forma, a leitura não se esgota ao primeiro olhar. Afinal de contas, se a atenção se dá apenas ao motivo, no caso o retrato, a leitura é rápida e superficial. Isso porque essa leitura depende do grau de interesse do observador pelo motivo.

Devemos evidenciar, além do conteúdo, o modo com que cada artista desenvolve suas possibilidades visuais. O exercício da leitura também é papel do historiador da arte.

“A visão em si possui sua história, e a relação destas camadas visuais deve ser encarada como a primeira tarefa da história da arte” (Wolfflin p.14)

No próximo artigo, quero trazer o enfoque para os retratos e autorretratos dos pintores da AIBA e ENBA, que foram o foco dessa minha pesquisa.

Até lá!

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