Releitura de Obra: porque não usar esse termo na escola

O termo releitura de obra é muito comum nas aulas de Artes do Ensino Fundamental. É muito provável, inclusive, que você já tenha feito a famosa “releitura de obra” na escola.

No entanto, como artista e professor de Arte, eu utilizo outras formas não apenas de conduzir esse tipo de atividade, mas também de denominá-la. Acredito, inclusive, que o termo “releitura de obra” nem seja o melhor termo a se utilizar para o tipo de atividades que realizamos no contexto escolar.

Neste artigo eu vou explicar a você não apenas os motivos pelos quais eu, particularmente, prefiro não utilizar o termo “releitura de obra”, mas também que termos eu uso no lugar deste e quais os motivos para isso. Acompanhe, então, a leitura!

Leitura de Obras de Arte

Antes de chegar na releitura de obra, precisamos entender alguns conceitos fundamentais. Você já ouviu falar que imagens ou pinturas podem ser lidas como um texto? Isso é verdade. E esses “textos”, digamos assim, exigem um certo conhecimento para que você saiba interpretá-los. Esse processo de aprender a ler imagens é como ser alfabetizado em uma nova língua. Ou seja: é algo que se pode aprender, assim como aprendemos a ler e a escrever também.

No entanto, nós temos um ensino muito deficitário nesse sentido no país. Para ser capaz de ler imagens adequadamente desde cedo, precisaríamos ser ensinados a isso desde pequenos. É claro que o fato de não aprendermos desde pequenos não impossibilita que aprendamos a fazer isso mais tarde. No entanto, essa aprendizagem ainda na infância nos permitiria aprender esse tipo de leitura de uma forma mais natural.

E saber ler imagens hoje em dia é muito importante. Não saber lê-las nos deixa à mercê daquilo que nos dizem sobre elas. Dessa forma, eu posso ver e apreciar uma obra de boa qualidade, mas terei dificuldades de compreendê-la. E isso pode me fazer acreditar em qualquer discurso que uma pessoa que pareça um pouco mais entendida faça sobre o assunto abordado no trabalho. E, acreditem, há muitas pessoas que não têm um mínimo de conhecimento, fazendo “leituras” absurdas de imagens por aí, mas dando a entender serem conhecedoras do assunto.

Mas é aquilo: nunca é tarde para aprender e, portanto, você pode começar agora mesmo.

Forma e Conteúdo

Há dois elementos principais quando se fala em leitura de imagens, principalmente no caso da pintura: sua forma, ou plano de expressão, e seu conteúdo. Para ser capaz de orientar trabalhos, precisamos dominá-los. Entenda melhor cada um deles abaixo.

A imagem que ilustra o artigo sobre releitura de obra do site Marco Baptista tem ao centro a pintura "A Santa Ceia", com linhas vermelhas mostrando que foi construída geometricamente proporcional. Nas laterais, palavras que expressam conceitos de Forma/Expressão e Conteúdo.

Forma / Expressão

O plano de expressão, também conhecido como forma, é a organização dos elementos dentro da obra. No exemplo acima você pode ver, linhas vermelhas que formam o esqueleto da pintura. Toda cena é construida utilizando linhas, formas e cores muito bem-organizadas.

Nós sabemos que Da Vinci era um artista com uma mentalidade muito privilegiada. Ele fazia suas obras em cima de esquemas matemáticos muito bem construídos, como você pode ver no exemplo da imagem. Observe melhor abaixo, como é possível perceber o uso perfeito de elementos geométricos muito bem construídos.

Isso serve para entendermos que, assim como a música é construída em cima de uma lógica, uma métrica, o mesmo acontece com a Pintura. A construção de uma obra é sim bastante complexa. Um artista não cria suas pinturas a partir de pensamentos como “Ah, achei isso bonitinho, vou colocar essa figurinha aqui, esse elemento ali“.

Não é assim que funciona, ao menos não para quem tem como objetivo fazer bons trabalhos.

Uma obra exige planejamento, uma mistura de razão e emoção bem equilibrada.

Conteúdo

Outro ponto que observamos em uma pintura é o seu conteúdo. O conteúdo tem a ver com tudo que pode ser reconhecido. Na obra de Da Vinci, por exemplo, no conteúdo temos pessoas, mesa, objetos e para quem conhece a Bíblia logo entende que se trata da última ceia de Cristo.

Quando falamos apenas dos elementos que constroem a obra, como ponto, linha, cor e forma, estamos falando do plano de expressão ou forma, mas quando damos nomes e significados aos elementos estamos falando de conteúdo. Todo conteúdo se manifesta dentro de uma forma e toda forma carrega um conteúdo.

Releitura de obra na escola – Porque não usar esse termo

As chamadas releituras de obra são muito comuns nas aulas de Arte do Ensino Fundamental. Elas são normalmente feitas tanto no Ensino Fundamental I quanto no Ensino Fundamental II.

O conceito em si da releitura seria a criação de uma nova obra a partir de outra. Essa criação pressupõe a manutenção da mesma “essência” da obra original. Mas aí vem a grande questão: qual é a essência de uma obra? Sua forma ou seu conteúdo? Seria tão fácil assim identificar a ponto de o aluno ser capaz de desenvolver um trabalho que realmente siga esse parâmetro?

Eu acredito que a identificação da essência da obra é mais complexa do que parece, e muitos adultos, mesmo estudantes de Arte, não conseguem fazê-la de maneira correta. Por isso, pedir para que um aluno do Ensino Fundamental seja capaz de identificá-la e ainda produzir um trabalho mantendo-a é, digamos assim, querer demais. E também desnecessário. Ainda que com a orientação do professor – julgando que este seja realmente capaz de identificar a tal essência da obra – eu vejo como algo complexo demais para essa fase.

É por isso que eu uso dois outros conceitos nas minhas aulas de Arte: paródia e paráfrase. Eu acredito que sejam não apenas mais bem compreendidos pelos alunos, como também mais úteis, pois criam um link com outras disciplinas como a Língua Portuguesa, por exemplo.

Achou complexo? Calma que eu vou te explicar melhor.

Releitura de Obra: a paródia

Esse é um termo muito bacana de ser utilizado nas aulas, pois ele já é amplamente conhecido por seu uso na música. Na paródia nós temos uma mudança de sentido do tema principal, ou seja: a mudança do conteúdo. No caso da música, nós mantemos a melodia, o ritmo e harmonia (elementos que caracterizam uma música) – a forma / expressão – e mudamos a letra – o conteúdo, ou seja a mensagem.

Transpondo isso para a Arte, mantemos também a forma / expressão (pintura, escultura) e mudamos o conteúdo (o tema). Um exemplo prático, que vai ajudar você a entender bem do que eu estou falando é uma pintura bem conhecida da Mônica, fazendo às vezes de Monalisa. Esse inclusive é um bom exemplo para ajudar os alunos a entenderem melhor. Nesse caso, foi mantida grande parte da forma / expressão, que é a mesma disposição dos objetos na pintura, posição da retratada e alguma semelhança de cores. No entanto, o conteúdo foi totalmente modificado: ao invés da Monalisa, temos a Mônica, ou seja, é outra “pessoa” ou assunto que segue o modelo. Você pode inclusive usar a imagem abaixo em suas aulas – e se você buscar no Google, há muitas mais.

Linkando com a Língua Portuguesa

A paródia, na música, tem um tom mais irônico. No entanto, nós não precisamos necessariamente usar esse tom para a paródia nas aulas de Arte. Este conceito também ajuda a criar um link com a Língua Portuguesa, ajudando os alunos a elaborar esse conceito em ambas as disciplinas, e pode fazer parte inclusive de um projeto conjunto. Várias cenas do cinema são paródias de pinturas famosas, pois apresentam elementos similares e dispostos da mesma forma que a pintura, mas são outras pessoas e contam novas histórias. Veja na imagem abaixo: A esquerda, a pintura O Beijo de Klimt, a direita uma cena de filme. Veja como ambas são muito parecidas, até mesmo nas cores, mas narram contextos diferentes. Isso é paródia.

cena de Ilha do medo e a tela O beijo, de Klimt  À esquerda, tela O beijo (1908), de Klimt e a à direita cena de Ilha do Medo

Releitura de obra: a paráfrase

Este é outro termo da Língua Portuguesa que pode ser perfeitamente transposto para a Arte, no lugar de “releitura de obra”. E ele também tem a função didática de ajudar na compreensão do conceito em Língua Portuguesa.

Ao contrário da paródia, na paráfrase, eu mantenho o mesmo conteúdo, e mudo a forma de expressão.

E, mais uma vez, trazemos o conceito auxiliar da Língua Portuguesa para facilitar a compreensão. Em Língua Portuguesa, parafrasear nada mais é que, após ler um determinado texto, explicá-lo usando nossas próprias palavras.

Transpondo para a Arte, eu mantenho o mesmo tema / conteúdo e o expresso de outra maneira que pode ser usando a mesma técnica ou outra. Mais uma vez, seguem imagens que ajudam a compreender melhor esse conceito.

Vimos que nestes exemplos Picasso fez várias paráfrases de Vèlazquez, todas são pinturas e referem-se ao mesmo tema. Mas você não precisa ficar refém da mesma técnica. Você pode fazer uma paráfrase usando a fotografia, por exemplo, desde que ambos os trabalhos falem da mesma história.

Frutos da Paixão - Mulher Católica ♡

Museu De Reproduções De Arte | Cristo carregando a cruz por Francisco Ribalta (1565-1628, Spain)

Nos exemplos acima, vemos a cena do filme Paixão de Cristo e a pintura de Francisco Ribalta. Ambas bem diferentes entre sí, quanto a linguagem e quanto a organização dos personagens, cores, formas etc. O que se mantém é que as duas contam a mesma história, Cristo carregando a cruz no meio da multidão. Isso é paráfrase.

Conclusão sobre o uso do termo releitura de obra

Quando falamos em releitura, portanto, eu vejo o termo usado bastante vago. O conceito de releitura é mais profundo e exige bastante conhecimento para pô-lo em prática.  Sendo assim, eu prefiro utilizar termos que linkam a Arte a outras áreas do conhecimento, até como uma forma de inter e transdisciplinaridade.

É importante deixar claro que nada disso é uma lei universal ou uma regra estanque. Essa é apenas a minha contribuição sobre o tema, a partir da minha experiência como professor de Artes.

Eu sempre procuro transpor meu conhecimento para a sala de aula, com o objetivo de que o aluno realmente consiga compreender a Arte mais profundamente. Por isso costumo fazer atividades que não apenas fogem um pouco do padrão comum, mas também trazem uma visão que considero muito bacana para eles.

Aos poucos compartilharei aqui algumas das minhas experiências, como a de hoje.

Releitura de Obra no Youtube

Caso você prefira assistir a um vídeo explicativo, publiquei hoje um vídeo no YouTube falando sobre esse tema. Se você achou interessante, compartilhe com outros colegas, para ampliarmos esse conhecimento e contribuir para a valorização dessa disciplina no contexto escolar.

Abraço!

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